Pular para o conteúdo principal

Jabá

Céu azul, limpo, nenhuma nuvem. Céu azul como se fosse a extensão do mar onde nem mesmo a linha do horizonte era capaz de diferenciar o que era céu e mar. 

O dia anunciava desejo de memória. Memória de infância lá em Sirinhaém. Poderia escolher qualquer lugar, qualquer restaurante. Podia ser o Chinês da 48, o Tomaselli do Espinheiro, o Quintal lá de Campo Grande, o Beijupirá, Oficina, Trattoria, em Olinda, o café da Livraria da Jaqueira, algum box do Mercado da Boa Vista, o Poke da Rio Branco, Chico do Galeto, algum restaurante de algum shopping. 

Nenhum desses traria ao mastigar o alimento, a memória que eu precisava. Memória de afeto, de mãe, memória de bico de peito farto, jorrando cuidado e nutriente. Eu tinha fome de memória maternal. 

Eu queria, ao sentir o sabor, saciar aquela fome que faz roncar o estômago, mas também aquela fome que faz clamar por afeto. Uma epifania dessas não demandaria nenhum local especial, com uma comida elaborada ou gourmetizada. Jamais. 

Maternidade combina com coisa simples. A simplicidade do olhar, do cheiro na testa, do pôr para dormir depois do leite gostoso. Até a mãe das mais despossuídas promove fartura com seu olhar e carinho para o bebê que chora de fome. 

É porque simplicidade existe há muito tempo. O primeiro ser humano nasceu de um útero, simples, escuro, quente e aconchegante. Era apenas o bebê e essa cavidade. Mais nada. Mas no nada havia tudo. O bebê tinha todo o cuidado da mãe. Era ele e ela num corpo só, como o alimento solvido.

Eu procurava um lugar desses onde eu poderia ser nutrido como o bebê é nutrido pelo cordão umbilical. Eu procurava um lugar onde eu pudesse rememorar aquele dia qualquer na cozinha da Rua São Francisco onde minha mãe com suas mãos fazia bolinho de macaco, depositando-os na minha pequena boca. O ontem e o hoje se misturam, interligando-se.

Fico um tanto confuso ao mesmo tempo que feliz. Marcado no (in)consciente, tenho o ato do bolinho sendo posto na boca, dissolvendo-se. Só tenho essa memória. Igualmente, tenho o estado de euforia e felicidade em mastigar aquele bolinho. Sobressaia o gosto do charque, salgado, saboroso. Não tenho a imagem nítida da minha mãe, como uma cena de filme. A imagem é uma sensação. Sensação de estupor, euforia, mil vezes sorriso.

O desejo de memória só seria satisfeito no número 180-A da Dantas Barreto. Carlos, em que pese ser homem, tinha o espírito maternal. Sabia como ninguém trazer memórias. Ele preparava o Jabá de forma artesanal depositando a energia do útero. Cada pai no seu cuidado é uma mãe em seu afeto. Tinha sabor de mãe aquele Jabá. Sabor da minha mãe. Ele era cauteloso em escolher o melhor feijão, o melhor arroz e o melhor charque para preparar aquela iguaria do seu restaurante. Carlos era o cozinheiro e o proprietário. Os condimentos eram segredo que só Carlos saberia cada proporção para chegar naquele sabor. Um sabor tão cativante.

Não preciso saber da preparação. O sabor de comida preparada por nós perde sabor. Quero continuar sem saber como faz o Jabá, pois só assim poderei ir no 180-A em dias ensolarados e ser alimentado de memória. De memória maternal de quando minha mãe colocava bolinhos de macaco na minha boca, marcando-me para sempre.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trabalenguas

" El cielo está engarabintantingulizado, ¿Quién lo desengarabintantingulizará?, El que lo desengarabintantingulice, Buen desengarabintantingulizador será " Quem ver pela primeira vez tantas palavras enormes e além do mais em espanhol dirá "que é isso?". Pois se trata de um trava língua ( trabalenguas ). Trava língua nada mais é do que um jogo de palavras formado pelo som que geralmente é difícil de pronunciar. A graça dos 'trabalenguas' é dizê-los bem rápido, ou pelo menos, tentar dizê-los. No início é como se nossa língua estivesse com algum problema, daí estar travada. Comum a todos os idiomas, os trava línguas fazem parte do repertório da literatura infantil e são utilizados pelos pais e educadores como meio de divertir, em primeiro lugar, e potencializar o desenvolvimento verbal das crianças. Atualmente, eles são utilizados para corrigir problemas de pronúncia. Nas aulas de espanhol, por exemplo, são usados para treinar a pronúncia de

Mercado da Boa Vista

Atravesso a rua. Saio. É preciso sair para enxergar melhor. É um sair de si para se encontrar. Ploeg visto de perto é lindo. Mas visto de longe se completa. O pórtico do Mercado é belo. Branco e um alaranjado. A entrada anuncia um átrio cravado no centro onde mesas são organizadas, ocupando todo o espaço, guarda-sóis da Coca-Cola abertos, pombos catando migalhas, gatinhos de rua pedindo um pedaço qualquer de comida, muito tempero no ar.  É quente. A garrafa de 600 ml de Brahma suada refresca a garganta no gole sedento. O cheiro no ar, como redemoinhos invisíveis, já acusa o que encontraremos de comer. Regionalismo gastronômico. É comida regional feita por gente simples que fala sem firulas. Tem costela. Tem carne de Sol com queijo coalho frito em cubos. Tem rabada. Tem arrumadinho. Tem galinha cabidela. Tem feijoada. Tem comida caseira. No preço leve pro bolso, mas pesada para uma sesta vespertina. Compensa. O burburinho é constante. Come-se e conversa-se. Vende-se e compra-se. Todos p

Rolha

Vinho italiano no Happy Hour. Carpaccio para acompanhar. Conversas e mais conversas. Tivemos conexão. Algo em comum nos ligava. Alemão e intercâmbio - só isso. Foram umas duas horas de papo. Durante todo esse tempo, a rolha não foi retirada da mesa, em que pese eu não tenha percebido sua presença. Duas horas de conversa e a rolha não fora percebida por mim, à exceção de quando o vinho fora aberto e eu cheirara a rolha como se sommelier fosse. Os garçons já devem saber que a rolha poderá ser um adorno para compor um quadro do apartamento do casal, uma coleção de rolhas de encontros casuais ou simplesmente um elemento de figuração do ambiente. Ao finalizar a noite, todos os elementos que compunham a mesa foram retirados: a garrafa vazia, o prato melado de mostarda e a cesta das torradas com migalhas. Apenas um elemento permaneceu na mesa: a rolha. O garçom poderia ter retirado. Não percebia ele que ali era apenas uma encenação cuja mola propulsora era tão somente um fetiche entre duas pe