Pular para o conteúdo principal

Whisky, um filme melancólico




"E essas ruas vazias saberão que a amo

Whisky é uma melancólica e engraçada história centrada na relação entre dois irmãos e uma mulher.

Os silêncios, os objetos, os espaços entre as coisas. Whisky está carregado de tudo isso. É a história de três pessoas sozinhas em um espaço semivazio, três pessoas que dizem pouco porque está tudo dito, ou nada está dito, ou tudo está implícito ou não resta mais nada para dizer. Ou quase nada...

Jacobo fabrica meias e Marta é sua mão direita. Ele aparenta ter 60, parece ser solteiro e dedicou sua vida em cuidar de sua mãe doente – que já morreu – e do seu velho negócio, que parece ter estancado em algum lugar impreciso do século passado. Jacobo quase não fala e seu olhar é severo, amargo, que diz tudo o que falta dizer.

Marta segue o ritmo do patrão. Numa sequência que se repite sutilmente três vezes diferentes no início do filme, vemos Marta e Jacobo entrar na fábrica, ligar as máquinas, trocar de roupa, tentar consertar uma cortina quebrada, preparar um copo de chá e cumprimentar às empregadas. O dia termina invariavelmente igual. Marta cumprimenta as companheiras de trabalho com um mecânico, “até amanhã se Deus quiser.” e assim se fecha a fábrica.

Entretanto Marta não perdeu completamente seus sonhos. Liga seu walkman e escuta – Hoy corte uma flor/ Y llovía y llovía/ Esperando a mi amor… - de Leonardo Favio enquanto viaja no ônibus. Jacobo, ao contrário, não espera nada: até seu time de futebol, El tanque Sisley, está entre os últimos.

Mas algo muda quando chega Herman, o irmão de Jacobo, que vive no Brasil há vinte anos e nunca havia voltado a Montevidéu. Jacobo pede a Marta para que ela se passe por sua esposa enquanto Herman está na capital uruguaia para o matzeive (cerimônia judaica que consiste em colocar a lápide na tumba de um falecido no ano da sua morte) da mãe de ambos.

O trio passará um final de semana em Piriápolis, em que a relativa jovialidade de Herman se transformará numa fonte constante de irritação para Jacobo, e de ilusão para Marta, enquanto passeiam pela praia despovoada, vão a um karaokê ou jogam mais coisas das que supõem no Cassino do Hotel Argentino.

Talvez a mudança mais radical entre o primeiro e o segundo filme no que diz respeito aos novos cineastas rio-platenses, a dupla Rebella/Stoll do naturalismo cotidiano de 25 watts seja uma sorte de humor seco, a surdina, que recorda o cinema do finlandês Aki Kaurismaki ou a certo cinema contemporâneo japonês. E de personagens jovens a um trio de cinquentões.

O que a distingue (e ai a semelhança com esses modelos) é o silêncio em que são conduzidos os personagens. Longe da tagarelice rio-platense, Jacobo, Herman y Marta quase não falam, e quando dizem algo tendem a repetir frases mecânicas, como se fosse de um manual.

O mesmo acontece com a câmera. Filma-se alterando o tipo de plano e armam cenas com bastante ritmo interno, mas a câmera jamais se move, dando ao filme uma estranha combinação de quietude e movimento que faz referência aos filmes de Martín Rejtman.

Essa moderação visual e sonora gera os efeitos mais destacados do filme. Seu humor explode a partir de um mínimo piscar de olhos, um plano de um imã na geraleida ou um respirador que atravessa o corredor. Fazer um furo na parede ou tentar pegar algum prêmio com um daqueles braços mecânicos, tópicos de parques de diversões, são motivos para a hilaridade.

Mas assim como a câmera permite fixar a atenção em objetos – que deixa claro a decadência dos lugares em que os personagens percorrem -, também estampa no filme a tristeza e desesperança que atinge os personagens, principalmente Jacobo.

Whisky é um filme em que a melancolia termina vencendo a graça. Um filme sobre segundas oportunidades – que se agarra ou se deixa escapar -, sobre contas familiares que jamais acontecem, sobre o dinheiro como tentativa vã de reestabelecer contatos sensíveis, e sobre alianças de casamento que são muitos grandes para dedos muitos pequenos."

Tradução do artigo "Y sabrán que te quiero esas calles vacías" de D.L do Jornal Clarín, Edição da quinta-feira - 03/03/2005

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dia do Leitor

Livros, de Van Gogh Em comemoração ao Dia do Leitor, indico um livro muito agradável de se ler. Trata-se de No mundo dos livros, do paulistano José Mindlin, um dos maiores amantes dos livros. Antes de falar propriamente sobre o livro, farei uma breve biografia do maior bibliófilo brasileiro.  José Mindlin nasceu em São Paulo no ano de 1914. Filho dos judeus Ephim Mindlin e Fanny Mindlin, José Mindlin desde criança mostrou seu interesse pela leitura, já que seus pais eram ávidos leitores. De 1932 a 1936, cursa a tradicional Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Trabalhou como advogado, empresário e jornalista. Dentre os seus clientes no escritório onde trabalhava tinha o escritor Monteiro Lobato e o historiador Caio Prado Jr. acusados na época de serem comunistas. No decorrer de sua vida, Mindlin monta aquela que mais tarde viria a ser considerada a maior e mais importante biblioteca particular do Brasil. Infelizmente, em fevereiro de 2010, esse grande bibli...

A escola brasileira e a fragmentação do ensino

* Por Viviane Mosé A educação brasileira é como um linha de montagem, onde a repetição e segmentação imperam. O modelo escolar que ainda predomina no Brasil foi diretamente marcado por dois fatores, a industrialização tardia e o regime militar. Inspirada na linha de montagem de uma fábrica, que fragmentou o trabalho humano tendo em vista o aumento da produtividade, nossa escola se caracterizou pela fragmentação, pela segmentação como modo de ação, como método. A vida escolar se organiza em séries, e os saberes se dividem em diversas disciplinas, sem conexão umas com as outras, ministradas em aulas de 50 minutos, que ainda se anunciam  por um sinal sonoro. O espaço é sempre muito segmentado, dividido por inúmeras salas, corredores, com pouco espaço de convivência, com pouca circulação. O objetivo era segmentar para aumentar a produção, o país precisava produzir mão de obra em massa para suprir a engrenagem industrial que estava nascendo. A escola para todos é uma escola de ...

Para que servem as ficções?

Hoje, fui estudar Português e para minha felicidade apareceu um texto maravilhoso, escrito por Contardo Calligaris. De forma mágica, ele mostra aos leitores a importância das ficções na construção da humanidade.                   Cresci numa família em que ler romances e assistir a filmes, ou seja, mergulhar em ficções, não era considerado uma perda de tempo. Podia atrasar os deveres ou sacrificar o sono para acabar um capítulo, e não era preciso me trancar no banheiro nem ler à luz de uma lanterna. Meus pais, eventualmente, pediam que organizasse melhor meu horário, mas deixavam claro que meu interesse pelas ficções era uma parte crucial (e aprovada) da minha “formação”. Eles sequer exigiam que as ditas ficções fossem edificantes ou tivessem um valor cultural estabelecido. Um policial e um Dostoiévski eram tratados com a mesma deferência. Quando foi a minha vez de ser pai, agi da mesma forma. Por quê? ...