Pular para o conteúdo principal

Rolha

Vinho italiano no Happy Hour. Carpaccio para acompanhar. Conversas e mais conversas. Tivemos conexão. Algo em comum nos ligava. Alemão e intercâmbio - só isso. Foram umas duas horas de papo. Durante todo esse tempo, a rolha não foi retirada da mesa, em que pese eu não tenha percebido sua presença. Duas horas de conversa e a rolha não fora percebida por mim, à exceção de quando o vinho fora aberto e eu cheirara a rolha como se sommelier fosse. Os garçons já devem saber que a rolha poderá ser um adorno para compor um quadro do apartamento do casal, uma coleção de rolhas de encontros casuais ou simplesmente um elemento de figuração do ambiente. Ao finalizar a noite, todos os elementos que compunham a mesa foram retirados: a garrafa vazia, o prato melado de mostarda e a cesta das torradas com migalhas. Apenas um elemento permaneceu na mesa: a rolha. O garçom poderia ter retirado. Não percebia ele que ali era apenas uma encenação cuja mola propulsora era tão somente um fetiche entre duas pessoas onde a diferença de idade entre elas era de seus sete anos. O garçom fez de propósito. Deixou a rolha lá, intacta, como uma pedra de cristal em exposição, iluminada por luzes dicróicas de led quentes, protegida por uma cúpula de vidro. Havia duas opções, sendo a primeira avisar ao garçom que ele esquecera de recolher a rolha ou a segunda opção de fazer uso dela para dar um fecho romântico à noite, como se a rolha representasse algo de concreto naquele encontro. Ardilosamente, F., com um olhar de Medusa, disfarçado do mais encantador gatinho, pega a rolha como se pegara a mais linda turmalina, olha para ela e para mim e com as pontas dos dedos polegar e indicador, guarda a rolha em sua bolsa preta feito daquelas de ir para eventos chiques, usadas por mulheres, que naquela noite combinava com sua calça também preta, formando um look ao fim totalmente feminino. Esse ato em sequência: pegar a rolha, olhar para mim com ar de Medusa e colocar a rolha em sua bolsa usando proeminentemente os dedos polegar e indicador, transmitiram para a encenação um ar totalmente noir. Ele treinara inúmeras vezes esse ato final de sua encenação no seu quarto, olhando para o espelho, com um sorriso tímido, enquanto via outras rolhas no seu potinho de cristal com capacidade para em torno de 100 rolhas. Naquela noite ao retornar para casa, ele tiraria a rolha de sua bolsa, colocaria ela juntamente com as outras que compunham sua coleção e se deitaria na cama, com um vazio tremendo, para pensar quando novamente ele iria encontrar um novo par para em sequência por em prática seu ato ensaiado com esmero: pegar a rolha, olhar com ar de Medusa e colocar a rolha em sua bolsa usando proeminentemente os dedos polegar e indicador. As rolhas eram sem dúvida sua estatueta do Oscar, porém entregues a uma atriz totalmente insatisfeita com sua carreira e que para sobreviver fazia uso constante de anti-depressivos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dia do Leitor

Livros, de Van Gogh Em comemoração ao Dia do Leitor, indico um livro muito agradável de se ler. Trata-se de No mundo dos livros, do paulistano José Mindlin, um dos maiores amantes dos livros. Antes de falar propriamente sobre o livro, farei uma breve biografia do maior bibliófilo brasileiro.  José Mindlin nasceu em São Paulo no ano de 1914. Filho dos judeus Ephim Mindlin e Fanny Mindlin, José Mindlin desde criança mostrou seu interesse pela leitura, já que seus pais eram ávidos leitores. De 1932 a 1936, cursa a tradicional Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Trabalhou como advogado, empresário e jornalista. Dentre os seus clientes no escritório onde trabalhava tinha o escritor Monteiro Lobato e o historiador Caio Prado Jr. acusados na época de serem comunistas. No decorrer de sua vida, Mindlin monta aquela que mais tarde viria a ser considerada a maior e mais importante biblioteca particular do Brasil. Infelizmente, em fevereiro de 2010, esse grande bibli...

A escola brasileira e a fragmentação do ensino

* Por Viviane Mosé A educação brasileira é como um linha de montagem, onde a repetição e segmentação imperam. O modelo escolar que ainda predomina no Brasil foi diretamente marcado por dois fatores, a industrialização tardia e o regime militar. Inspirada na linha de montagem de uma fábrica, que fragmentou o trabalho humano tendo em vista o aumento da produtividade, nossa escola se caracterizou pela fragmentação, pela segmentação como modo de ação, como método. A vida escolar se organiza em séries, e os saberes se dividem em diversas disciplinas, sem conexão umas com as outras, ministradas em aulas de 50 minutos, que ainda se anunciam  por um sinal sonoro. O espaço é sempre muito segmentado, dividido por inúmeras salas, corredores, com pouco espaço de convivência, com pouca circulação. O objetivo era segmentar para aumentar a produção, o país precisava produzir mão de obra em massa para suprir a engrenagem industrial que estava nascendo. A escola para todos é uma escola de ...

Para que servem as ficções?

Hoje, fui estudar Português e para minha felicidade apareceu um texto maravilhoso, escrito por Contardo Calligaris. De forma mágica, ele mostra aos leitores a importância das ficções na construção da humanidade.                   Cresci numa família em que ler romances e assistir a filmes, ou seja, mergulhar em ficções, não era considerado uma perda de tempo. Podia atrasar os deveres ou sacrificar o sono para acabar um capítulo, e não era preciso me trancar no banheiro nem ler à luz de uma lanterna. Meus pais, eventualmente, pediam que organizasse melhor meu horário, mas deixavam claro que meu interesse pelas ficções era uma parte crucial (e aprovada) da minha “formação”. Eles sequer exigiam que as ditas ficções fossem edificantes ou tivessem um valor cultural estabelecido. Um policial e um Dostoiévski eram tratados com a mesma deferência. Quando foi a minha vez de ser pai, agi da mesma forma. Por quê? ...