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Filtro de Barro

Filtro de barro tatuado em algum local de suas pernas. Não se sabendo se na esquerda ou na direita. A efusividade de um encontro misterioso não permitia memorizar com precisão cada local de suas mais de quatro tatuagens. Ou seriam exatamente quatro. Sendo exatamente quatro, o olhar memorizara bem cada centímetro do corpo. Quem sabe eram cinco, jogando dúvidas na memória. 

Encontro com regras prévias. Não regras chatas a evitar o encontro, como aquelas em que perdemos o interesse rapidamente. Pelo contrário, regras pactuadas, a exemplo do uso de nomes fictícios, do não compartilhamento de contatos, da não entrega de redes sociais. Um encontro jogado ao acaso, com um enredo prévio de certa forma afrodisíaco, intelectual, reticente para uma aproximação com o receio de se envolver. Com quebra de expectativas num primeiro momento, como um balde de água fria para quebrar o gelo. Um enunciado categórico de quem diz: venha, mas nem tanto. 

O desconhecido cativa, aumenta os níveis de adrenalina, faz querer descortinar as fragilidades, encontrar as forças, compartilhar fluídos em tão fluídos encontros. Faz querer se despir dos medos e encarar o não-saber, de jogar-se sem medo com vulnerabilidade e colhendo as consequências. 

O filtro de barro, identificado no escuro, após aproximar a perna dos olhos, fez-lhe viajar para a infância. Sinal de conexão? Nada, apenas um detalhe a dar contornos únicos àquele momento. Por mais que não fosse conexão, o déjà-vu havia lampejado ao ver aquela diminuta tatuagem, feita com esmero. 

A fragrância do corpo, agradável como um óleo essencial de jasmim, posteriormente somado ao sabonete Phebo usado no banheiro, trazia um sentimento de bem-estar, fazendo-lhe viajar no tempo. Havia assim um cheiro predominantemente arbóreo em conjunto ao jogo de cama que parecia ter sido trocado naquela manhã. 

Ao adentrar no quarto, já se encontrava desnudo, como uma cortina que descerra o palco, pronto para receber toda a energia de uma encenação. Não qualquer encenação: automática, performática ou ensaiada a se somar a um sem sentido amorfo de gozos. Pelo contrário, única, visceral, extenuante, numa noite de segunda-feira, após um final de semana com outra encenação talvez interessante com outro desconhecido, mas tão comum, tão comum que flerta com o banal. 

As preliminares, em movimentos lentos como um escultor que busca esculpir com habilidade, achando a essência da sua obra no bloco monolítico, foram meticulosamente calculadas e talhadas. Cada talho tinha uma precisão como se se tratasse do Êxtase de Santa Teresa, em que Bernini passara sete anos trabalhando diuturnamente para entregar a mais bela obra barroca.

Os dedos davam forma à argila branca, sentindo a textura de cada trecho do corpo, de cada parte, como se quisesse possuir aquele corpo para sempre, dando os contornos necessários para moldá-lo como o mais proficiente ceramista. 

A cabeça era segurada pelas mãos grandes, sem nenhuma força, porque estava entregue para o beijo. Era um objeto a ser dominado, possuído, destruído pela força e calor. 

Entre jogos e prazeres, a dança de corpos percorria uma saga dantesca de pecados e afanações, com uma sudorese congruente a cinética bailante. Pingava no rosto o suor, enquanto a fisionomia lembrava um misto de dor e prazer, uma tensão entre pulsão de vida e pulsão de morte. 

Encontrava-se ali na mais fronteiriça divisão onde os corpos se fundem em um só, onde os corpos depois do fim só serão um resto. Um resto de início, um resto de fim. Um resto de querer mais. 

Ao fundo, o silêncio da noite era cortado pelo transpassar dos VLTs que cruzavam a avenida em movimento acelerado, com o motor esbravejando o diesel. Tratava-se do mesmo som do motor do VLT usado para abafar o clamor por mais gozo, por mais força, por mais pecado. 

Havia apenas uma janela aberta e um pequeno ventilador naquele quarto de um apartamento que tinha uma janela ampla na sala de estar, do chão ao teto, cuja vista dava diretamente para uma praça. O quarto, num plano superior ao da sala, indicava se tratar de uma edificação antiga, mas bem projetada, onde era necessário para acessar o quarto, subir um lance de escadas. A ventilação do quarto era insuficiente para evitar a liquefação do corpo, tão marcante naquela dança. A noite era quente e abafada. 

Após horas e horas de magia, dois estranhos teriam que se despedir, sendo possível novos encontros, desde que com pactos bem delimitados, anunciados em meio a encenação. 

As festividades de final de ano dariam a distância necessária para surgir mais desejo de uma nova peça de Sade, de uma nova escultura de Bernini, de uma nova porcelana de um ceramista qualquer, mesmo que ali tivesse surgido desejos de quebrar regras, mas os dois estranhos estavam dispostos a dar continuidade às fantasias bem pactuadas. Por mais que viessem a saber o nome um do outro, nada mudaria, pois naquela noite havia saído uma encenação inegavelmente inesquecível. 

A despedida fora simples, um beijo no rosto, um abraço apertado e uma frase de final de ano: Feliz Natal e Feliz Ano Novo. O final se igualava ao início, em total retribuição, quando através de um elogio despretensioso, falara que o estranho pessoalmente era mais bonito que em foto. 

Os dois estranhos talvez voltem a se ver, mas jamais terão a mesma encenação inaugural daquela segunda-feira. A primeira encenação sempre possui contornos mágicos, vira um conto impossível de se reproduzir por ser único, por ser uma obra defesa à qualquer reprodução, por jogar hormônios que o cérebro não dar conta, por dar sentimentos típicos daquilo que se inicia, que se inaugura, com uma roupagem irreproduzível.

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