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Meu Guri



Lembrei de uma música de Chico Buarque que marcou minha infância. Numa prova de Português, uma das questões de interpretação era a música Meu Guri. Inicialmente, li, fiz a questão e nada de especial aconteceu. Entretanto, tempos depois me aparece no rádio essa música. 
Estranhei. Sabia que já havia escutado antes, ou melhor, lido. Exatamente. Estava na minha prova de Português do Ensino Fundamental. 
Agora, trago uma análise minuciosa da música, até porque cresci e, consequentemente, minha análise de mundo mudou.

Vejamos a letra da música.

Meu Guri 

Quando, seu moço, nasceu meu rebento 
Não era o momento dele rebentar 
Já foi nascendo com cara de fome 
E eu não tinha nem nome pra lhe dar 
Como fui levando, não sei lhe explicar 
Fui assim levando ele a me levar 
E na sua meninice ele um dia me disse  
Que chegava lá 
Olha aí 
Olha aí 
Olha aí, ai o meu guri, olha aí 
Olha aí, é o meu guri 
E ele chega 

Chega suado e veloz do batente 
E traz sempre um presente pra me encabular 
Tanta corrente de ouro, seu moço 
Que haja pescoço pra enfiar 
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro 
Chave, caderneta, terço e patuá 
Um lenço e uma penca de documentos 
Pra finalmente eu me identificar, olha aí 
Olha aí, ai o meu guri, olha aí 
Olha aí, é o meu guri 
E ele chega 

Chega no morro com carregamento 
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador 
Rezo até ele chegar cá no alto  
Essa onda de assalto tá um horror 
Eu consolo ele, ele me consola 
Boto ele no colo pra ele me ninar 
De repente acordo, olho pro lado 
E o danado já foi trabalhar, olha aí 
Olha aí, ai o meu guri, olha aí 
Olha aí, é o meu guri 
E ele chega 

Chega estampado, manchete, retrato 
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais 
Eu não entendo essa gente, seu moço 
Fazendo alvoroço demais 
O guri no mato, acho que tá rindo 
Acho que tá lindo de papo pro ar 
Desde o começo, eu não disse, seu moço 
Ele disse que chegava lá 
Olha aí, olha aí 
Olha aí, ai o meu guri, olha aí 
Olha aí, é o meu guri.

A música foi gravada 1981 e traz a temática da marginalização dos jovens brasileiros, mais especificamente, os da periferia que acabam se envolvendo no mundo das drogas. A partir do trabalho "Meu Guri: um recorte semiótico da canção" da professora de linguagem e argumentação Delaine Marcia Martinelli, vê-se, passados mais de 25 anos, a presença desse tema nos principais jornais, na seção policial.

Analisando a canção, parágrafo por parágrafo, veremos o nascimento, crescimento e morte do jovem permeados pela segregação sócioeconômica.

No primeiro parágrafo, vemos que, desde o nascimento, o jovem já sofre com a marginalização e a desigualdade social. Sua cara de fome denuncia a precariedade da vida, além disso, vemos que a mãe, já no início, não entende como conseguiu criar o filho - Como fui levando, não sei lhe explicar Fui assim levando ele a me levar. Ainda no primeiro parágrafo, vemos que o"guri" já influenciado pelo ambiente da favela, diz:  Que chegava lá, ou seja, independentemente da maneira como ele chegará, desde infância o jovem almeja uma vida melhor.

No desenrolar da canção, vemos que o jovem inicia seu trabalho e ao retornar para casa  Chega suado e veloz do batente. Mas o trabalho não é legal. Implicitamente, vemos que os presentes que o "guri" leva para sua mãe pertencem à outra pessoa. Até com documento de identificação, a bolsa chegou. É com o desejo de possuí elementos que representem riqueza que o "guri" prossegue sua vida.

Em determinado momento, o sujeito guri, como assim foi chamado por  Delaine Marcia Martinelli, transforma sua vida, ou tenta transformá-la, através do crime. A palavra Carregamento, na 3ª estrofe - Chega no morro com carregamento - leva uma forte marca que no jargão policial carrega uma carga semântica cujo significado é o transporte de mercadorias ilegais ou contrabandeadas, ilícitas.

Na última estrofe, vemos o tal "chegar lá" defendido pelo "guri". Entretanto, uma das possíveis interpretações e a mais provável seria a morte do sujeito. Quando ele aparece - (...) estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos, legenda e as iniciais, associamos imediatamente às publicações feitas nos jornais dos inúmeros jovens envolvidos com o mundo do crime e da marginalização. 


Até a última estrofe, vemos a inocência da mãe. Em nenhum momento, ela associa seu filho com o mundo do crime. Pelo contrário, ao afirmar - Essa onda de assalto tá um horror - ela comprova sua preocupação e amabilidade para com o filho. Percebe-se na 3ª estrofe a aproximação do guri e da mãe quando ela afirma: Eu consolo ele, ele me consola / Boto ele no colo pra ele me ninar. A mãe chega até a dizer que não entende o alvoroço das pessoas quando veem a manchete. Todos os comportamentos da mãe são justificados no trecho a seguir, da autora Delaine Marcia Martinelli:

"Ao final do texto a mãe diz não entender o alvoroço que se faz a partir da  “manchete, retrato, com vendas nos olhos, legenda e as iniciais”, neste ponto, pode-se dizer que a enunciadora, ao longo de seu discurso, quis convencer o interlocutor de sua inocência, pois ao referir a si própria usa efeitos de proximidade e de subjetividade. Apresenta-se como uma mulher pobre e ignorante, sem documento; que criou o filho sozinha, com todas as dificuldades que isso implica. Uma mulher que ficava encabulada com os presentes que o guri lhe dava, que tem medo (“essa onda de assalto tá um horror”), que é pessoa temente a Deus (“rezo até ele chegar cá no alto”). Ou seja, a enunciadora se coloca como alguém que nada podia fazer (ou não queria fazer) para interpelar o  guri,  pois este tinha o  querer-poder-fazer e nada o destituiria de seu desejo maior: ficar disjunto de uma vida miserável. A repetição constante do verso “Ele disse que chegava lá” marca, desde o início do texto, o desejo do  guri e, ao finalizar as estrofes com  “Ele chega”, a enunciadora registra a conquista do querer maior: chegar lá."
 
Percebe-se, portanto, que na letra  "Chico Buarque valeu-se de elementos de figurativização" e que as figuras utilizadas "tematizam um dos maiores problemas sociais brasileiros: jovens marginalizados dos grandes centros urbanos e sua ‘captura’ pelo crime organizado; ou numa análise mais pertinente (talvez mais apropriada): a falta de políticas públicas para amenizar o abismo sócio-econômico do povo brasileiro."

Vários trechos aspeados foram extraídos do artigo que se encontra no link acima. É um artigo de uma autora cujo nome foi citado em dos parágrafos da postagem. Pertence a professora de Linguagem e Argumentação Delaine Marcia Martinelli.

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