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A escola brasileira e a fragmentação do ensino

* Por Viviane Mosé

A educação brasileira é como um linha de montagem,
onde a repetição e segmentação imperam.


O modelo escolar que ainda predomina no Brasil foi diretamente marcado por dois fatores, a industrialização tardia e o regime militar. Inspirada na linha de montagem de uma fábrica, que fragmentou o trabalho humano tendo em vista o aumento da produtividade, nossa escola se caracterizou pela fragmentação, pela segmentação como modo de ação, como método. A vida escolar se organiza em séries, e os saberes se dividem em diversas disciplinas, sem conexão umas com as outras, ministradas em aulas de 50 minutos, que ainda se anunciam  por um sinal sonoro. O espaço é sempre muito segmentado, dividido por inúmeras salas, corredores, com pouco espaço de convivência, com pouca circulação. O objetivo era segmentar para aumentar a produção, o país precisava produzir mão de obra em massa para suprir a engrenagem industrial que estava nascendo. A escola para todos é uma escola de massa, que se estruturou como a linha de montagem de uma fábrica, e que tinha como alvo formar mão de obra para o mercado, especialmente para a indústria, mão de obra assalariada.

Carregando ainda a herança do regime militar que passou a vigorar no Brasil a partir de 1964, a educação brasileira se tornou refém de um sistema disciplinar que nomeia como "grade" o currículo, como "disciplina" os conteúdos, como "prova" o dispositivo de avaliação, e que eliminou a filosofia e os saberes reflexivos e críticos em prol de um modelo fundado na passividade e na repetição. Não a criatividade, a inteligência viva, mas o bom comportamento, a disciplina, a ordem. A escola brasileira ainda guarda o modelo de escola como um reformatório, uma prisão. Sem contar os efeitos castradores e redutores causados pelo medo que o regime instaurou com seus modelos de vigilância, que afastou professores comprometidos e atuantes na sociedade, proibiu livros, restringiu condutas. Os professores e os intelectuais foram o grande alvo deste regime, e a formação dos jovens e crianças a grande prejudicada.

Com tudo isso, a escola acabou se tornando um espaço isolado, explicitamente afastado das questões que movem a vida das pessoas, afastado dos desafios da vida em sociedade. Ao mesmo tempo, as crianças, desde que entram na escola, vão sendo treinadas a ver o mundo apenas a partir de si mesmas, de sua condição social, que pode ser de "vencedor" ou de "perdedor", de arrogância ou de revolta, e jamais são estimuladas a ver a sociedade como um todo, com suas infinitas contradições e desafios.

Esta falta de inserção não é apenas prejudicial para o desenvolvimento das relações humanas, da justiça social, de uma atitude sustentável e ética mas implica diretamente no grau de angústia e solidão que impulsiona cada vez mais ao consumo de produtos, de pessoas, de drogas lícitas e ilícitas. Como bem disse Jurandir Freire , terminamos destruindo aquilo que não temos coragem de transformar, incluindo nós mesmos. Participar do todo da sociedade nos dá uma sensação de pertencimento, nos envolve em projetos coletivos, nos dignifica e sustenta. Mas a escola foi se afastando dessa continuidade, e se baseando em um conhecimento dividido e abstrato. Não formamos pessoas mas fragmentos desconectados.

A hiper-especialidade, o ensino voltado ao "científico" , movido pela euforia tecnicista, os inúmeros conteúdos, sem conexão entre si, sem contexto - nos levaram a uma sociedade que desaprendeu o valor do todo, do global, do complexo. E nos tornamos especialistas cada vez mais fragmentados, desvinculados das grandes questões humanas, sociais e planetárias. E vamos vivendo acoplados a uma parcela tão pequena da realidade que chegamos a esquecer quem somos, o que buscamos. Se, por um lado, a fragmentação do ensino respondia à necessidade de produzir uma educação "em massa", por outro, atendia à fundamentação ideológica do novo regime, avesso à reflexão e à crítica, como mostram as denominações que ainda hoje usamos: grade curricular, disciplina, prova.

A escola foi e ainda é, em nossas vidas, um dos primeiros momentos onde o mecanismo de exclusão é aplicado. Primeiro porque é uma instituição isolada da comunidade, da cidade. Segundo, porque o sistema de reprovação é um dos primeiros processos de exclusão que atinge as crianças, com enorme prejuízo par seu desenvolvimento: a escola não se responsabiliza pelo desempenho insuficiente do aluno, ao contrário, quando reprova transfere para o aluno todo o fracasso. Em alguns municípios do Brasil mais de 50% das crianças ficam reprovadas no primeiro ano do ensino fundamental. Os que se adaptam ao sistema educacional são promovidos ao ano seguinte, os de boa memória, os simpáticos, os bem comportados; e os irrequietos, curiosos, criativos, diferentes, são deixados de lado; mas também são excluídos os gordos, os muito magros, os de orelhas grande... Não é dizer "você está excluído", o grande problema, mas o mescanismo subliminar que nos faz crer que somos poucos, pobres, incapazes de poema, de filosofia, de ciência, de expansão. E foram tantos os excluídos, nos diversos modos que a sociedade tem de julgar, que nos espaços de marginalidade como as prisões, as favelas, os guetos, foram ficando apertados, e todos acabamos nos encontrando, nos tocando. A linha divisória que demarcava a fronteira entre "nós" e "eles" se desfez. Esse é um dos fenômenos contemporâneos, a aproximação , a rede de conexão e trocas propiciadas pela tecnologia. Ninguém mais está preso, nem isolado, todos se aproximam mas não se relacionam porque mais do que se aproximar, se relacionar é ser capaz de trocar, o que exige respeitar as diferenças.

Sem perspectivas diante dos inúmeros desafios do mundo atual, a escola já não satisfaz ninguém: nem alunos, nem professores, nem gestores, nem as cidades, nem o mercado. Os altos índices de evasão escolar, os baixos rendimentos dos alunos, o desinteresse e a falta de estímulo que atinge a quase todos e a violência parecem revelar a exaustão de estruturas antigas e a necessidade de reconstrução.

Precisamos de uma escola onde o aluno seja ouvido e considerado. Uma escola para o aluno, dirigida para o seu desenvolvimento, tendo como alvo a vida, em todas as suas dimensões, e não apenas uma escola voltada para o mercado de trabalho. Uma escola onde a arte, a filosofia, a ética estejam tão presentes que não precisem de 50 minutos na grade curricular; ou melhor, que não tenha grade curricular mas temas, assuntos, questões. Uma escola que não se acovarde diante das perguntas mais difíceis, como a morte, o tempo, a dor, a violência, a discriminação social e racial, mas que construa espaço onde essas questões sejam discutidas, pensandas. Enfim, uma escola viva, alegre, corajosa, sempre aberta a novas questões. Precisamos resgatar nossa humanidade, que reside não na capacidade de guardar e acumular dados e coisas mas na criação de sempre novos conceitos e valores, quer dizer, na produção de conhecimentos que acontece em função da coragem de ir sempre a novos lugares, e viver novas coisas.



Os dois vídeos abaixo retratam, através do olhar de alguns estudiosos, como a Ditadura Militar projetou a educação para atender aos seus ideais. Além de fazerem uma intertextualização com o ensaio de Viviane Mosé que nos alerta para as marcas que nossas escolas ainda guardam daquele período e a necessidade de repensar a educação brasileira.

Educação na Ditadura: A Marca da Repressão 





Educação na Ditadura: A Marca da Repressão





*Viviane Mosé é filósofa, psicóloga, psicanalista e poeta. Mestre e Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é autora de Nietzsche e a grande política da linguagem (Civilização Brasileira, 2005). Atualmente apresenta programa na Rádio CBN.

"A escola brasileira e a fragmentação do ensino" é parte do ensaio A educação e a vida: A questão da educação e a prevalência da afirmação da vida na obra de Friedrich Nietzsche e suas perspectivas sobre o Brasil, publicado na Revista Coleção Guias de Filosofia Nietzsche, O filósofo e a educação. Volume III, Editora Escala. Pág. 62. 

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